
Eram oito horas e dezessete minutos da noite, quando decidi ir ao Curitiba Strings. Acordei quando já haviam algumas estrelas no céu, e o sol se punha no horizonte. Quase não pude vê-las, pois uma camada grossa de nuvens escuras e poluição cobria o firmamento como uma cortina de fumaça.
O Astro-Rei agonizava nos limites do horizonte, e a noite se aproximava.Fechei a janela do meu minúsculo quarto. Não que o frio me afetasse, mas o calor era algo preferível. Talvez por enquanto.
Fazia algum tempo que havia perdido quase todo o meu contato com o mundo. Meu apartamento estava uma bagunça: filmes fotográficos, câmeras, aparelhos de iluminação e laptops estavam empilhados por tudo. O chão estava coberto por roupas sujas, latinhas de cerveja, caixas de pizza, garrafas de vinho-tinto e alguns preservativos.... sem uso.
Por esses dois meses, fui tomado de um medo absurdo de sair de casa. Meus clientes volta e meia ligavam, perguntando da minha disponibilidade durante o dia. Meus colegas e ex-namoradas me encontravam a noite, e diziam como eu estava diferente, e como haviam sentido minha falta. Me convidavam para baladas, bebedeiras, festas e restaurantes. Me convidavam para fumar narguilleh, para sentir o cheiro de um cafézinho quente, ou apreciar uma pizza. Ah, como eu amava pizzas! Mas o único cheiro, o único gosto que vinha em minha mente e inebriava meus sentidos era o do sangue deles.
Sou um predador, agora. Um bicho selvagem, sujeito a acessos de raiva e gula; capaz de coisas que mesmo um psicopata temeria. Um bicho com uma máscara de sutileza, discrição e segredos; mas tão cruel e inumano quanto aquela Corte de nobres decadentes e sem coração. Pelo menos, em potência...
Não, preciso me enclausurar. Preciso ficar trancado nesse mundo noturno para que eu não acabe com as pessoas que mais gosto e estimo. Preciso trancafiar tudo o que é humano em mim, e me lembrar do quão bom era ser tão vulnerável, quente e capaz de amar. Preciso guardar esses detalhes, como eu os guardava nas fotos.
Enfim, cheguei ao bar. A música estava agitada, e havia uma balada no local. Sentei-me no balcão. Cristiano sorriu ao me ver.
"O de sempre, caçulinha?"
Ri ao ouvir isso.
"Caçulinha?" - perguntei, pagando 50 reais pela bebida. Precisava aprender a caçar.
"É. Tá todo mundo comentando de você, cara. ´Jesuis' te ama. O Príncipe não poupa ninguém, e você saiu na moral! Olha, só por essa, a segunda é por conta da casa."
"Obrigado mesmo, Cristiano... mas, você pode me dizer mais sobre o Príncipe e a Corte dele?"
"Claro... cara, o Príncipe é um canalha. Mas não diga isso pra ele. Sério, meu. Ele pode parecer o cara mais equilibrado e justo do mundo... mas sério, ele é monstro. Ele é doido. E a Corte dele..."
Uma voz feminina surgiu do lado do balcão:
"... são um bando de bajuladores filhos da puta, não valem o que bebem. Cara, tenho nojo daquela ameixa-seca de cartola. Sério mesmo. Dá nojo. Dá Raiva!"
"Eu ainda não tive a honra de saber o nome da senhorita..." - olhei para a moça. Como era linda!Estava sentada ao meu lado, e eu nem a havia notado. Seus cabelos eram negros, curtos e bonitos; sua pele alva como a neve e seus olhos eram negros e vulneráveis, contrastando com sua postura anárquica e irrequieta. Não devia ter mais que uns 22 anos, e trajava um vestido negro.

"Meu nome não é importante. Então, você é novo por aqui, hein? E disse umas verdades pro Príncipe, certo? Caaaaaara, isso que é coragem. Você devia ser um Carthiano."
"Obrigado... mas o que é um Carthiano? Tem algo a ver com a Corte Invictus? Ou esse tal Clã Mekhet?"
Cristiano riu, e explicou:
"Não, cara. Clã é uma coisa, e 'Corte' é outra. Clã é tipo uma raça, digamos assim. Ninguém sabe de onde surgiram os bebedores de sangue, mas desde sempre existem cinco 'tipos' classificados.Você, assim como eu e os que nos criaram, é um Mekhet, uma 'espécie' de vampiros soturnos, discretos e espertos.A Katrina, a moça de boca suja aqui do lado, é uma Gangrel, um clã de gente selvagem, animalesca e boca-suja. O Xerife é do Clã Gangrel também."
"E esse Clã Ventrue, do Príncipe?"-perguntei. Katrina se exaltou:
"Fascistas. Bando de gente que gosta de mandar nos outros. Eles acham que podem controlar vampiros e humanos, secretamente. Eles são meio lunáticos, uma mistura daqueles coronéis de novelas de época com aquele personagem de desenho que quer dominar o mundo. São uma merda, isso sim. "
Cristiano fez uma careta.
"Obrigado pela aula, Kat.Além desses três, tem o Clã Nosferatu e o Clã Daeva. Os primeiros são vampiros estranhos, geralmente horripilantes ou assustadores, caso não sejam feios, o que é muito raro.Eles sabem de tudo, até mais do que nós. E os Daeva são..."
"Veadinho!" -exclamou Katrina de súbito para um garoto loiro, que estava dançando insinuantemente na pista, e distribuía sorrisos para todos.Distraía-se com a música.Era um garoto bonito, imaginei que poderia ser modelo fotográfico ou algo do gênero. Seus sorrisos faziam com que seus caninos pudessem ser vistos por entre os lasers e as luzes estroboscópicas. Ao ouvir Katrina, fez uma careta e veio em nossa direção.

"Estávamos falando de você!" - continuou Kat, conversando com o rapaz.Ela lhe roubou um beijo, numa atitude claramente "inversão de papéis". Eu sorri, meio sem jeito.
"Muito engraçadinha, você, Kat. Sou o Lucas.E o que diziam sobre a minha pessoa?" - perguntou o rapaz, olhando-me de relance rapidamente.Tive de repente uma sensação esquisita, que preferi ignorar, ao olhá-lo. Cristiano explicou:
"Estávamos falando com o Pietro, sobre os clãs. Ele é um 'recém-nascido'. Íamos apresentar os Daeva..."
"Ah sim, é o melhor clã de todos" -explicou Lucas- "é tão perfeito que toda essa gente nos inveja.Um clã de... "
Katrina mostrou a língua, e continuou a explicação:
"... michês, artistas, prostitutas e toda essa gente da zona. Eles são uns posers, bando de gente metida e desocupada que acha que pode posar e seduzir todo mundo"
"A segunda metade está certa, cara. Os Daeva são vampiros humanos, sedutores, hedonistas... e um pouco metidos mesmo, não é, Lucas?" - riu Cristiano.
"Imagine! Metido é um Ventrue.Eu não me acho metido, é que às vezes eu não enxergo as pessoas..."
"Enfim" - prossegui o barman - "cada clã tem suas fraquezas, poderes e reputação ."
"Cristiano... enquanto eu estava sendo levado pra mansão da Corte, eu consegui ver uma coisa...de longe... como se estivesse vendo com um binóculos. Esse é um dos 'poderes' que você diz? Ver as coisas de longe?"
"Sim. Mas não é só um poder de ultra-visão, são super-sentidos no geral. Nosso clã tem facilidade para aprender esse tipo de poder. Os anciões chamam esse poder de Auspícios, pelo que ouvi dizer . Mas há muitos outros. Já vi muitos Mekhets que conseguem desaparecer do nada ou correr numa velocidade absurda. Com um pouco de meditação, você consegue desenvolvê-los... ou torná-los mais fortes."
"Qual o poder dos Daeva?" - perguntei novamente.
"Eles conseguem seduzir as pessoas instantaneamente... ou quase isso, com a habilidade deles. Não importa o sexo, a pessoa se apaixona pelo vampiro e faz qualquer coisa que ele diga."
"Se chama Majestade" - acrescentou Lucas com um sorriso malicioso, jogando em si mesmo o conteúdo de uma taça de champanhe- "mas na maioria das vezes eu não preciso dela. Uso meu próprio charme pessoal."
"Que seja, veadinho. Então, Pietro, existe esse troço de poderes, sim.Mas você queria saber sobre a 'Corte', certo? Cris, explique pra ele" - pediu Kat.
"Além dos clãs, existem 'Assembléias', ou 'Instituições' da nossa espécie.É como uma sociedade, um clube onde você faz parte.A Corte Invictus é uma delas. E existe pelo mundo todo, mas é independente e auto-suficiente em cada cidade. Aqui em Curitiba, eles são os mais influentes. Como você viu, eles são uma corte de vampiros antiquíssimos, que lutam por poder e mais poder. Eles dizem que mandam na cidade. São antigos nobres, cavaleiros, advogados, empresários e governantes; que querem tomar bairros, empresas, dinheiro e tudo pra eles. Fique longe dessa gente, cara. Essa gente antiga é falsa, perigosa demais. "
"E esses Carthianos? Quem são?" - quis saber.
"A Opção Carthiana é um grupo de vampiros modernos, um bando de socialistas e anarquistas organizados que tentam mudar o governo, fazer com que as coisas aconteçam do jeito justo. Eles estão em guerra contra a Corte Invictus, e são a segunda assembléia mais poderosa aqui da cidade.São boa gente, mas às vezes são radicais demais ou são completamente fora da realidade.A Kat aqui é Carthiana."
"E você, Cristiano?"
"Eu sou um Desalinhado, como o meu bar. Desalinhados são aqueles que preferem ficar fora das assembléias, tipo, em cima do muro. O Curitiba Strings é um lugar neutro, todos podem vir aqui. Mas se der briga, as pessoas são julgadas conforme as leis da Corte... e da assembléia do sujeito, se for o caso.Mas esse tipo de coisa é rara. Todo mundo reconhece que precisa de um ponto de encontro neutro."
Lucas falou:
"Além desses, existem outras 'Assembléias', mas são estranhas demais, minha gente. Eu não sei muito sobre elas, mas... bem, já ouviu falar sobre a Lança Santa?Uma religião esquisita,um bando de fanáticos, e apoiam a Corte. Coisa medonha.Tenho uma amiga que é do Círculo da Anciã. Outra coisa estranha, um bando de ocultistas, bruxos. Você é corajoso, Pietro. Anda sozinho por aí, com a cidade em guerra, desafia o Príncipe e ainda sai sem problema... "
"Fica com a gente" - pediu Kat. "é muito perigoso esse jogo dos antigos.Sair por aí sozinho é perigoso."
"É, Pietro. Você é jovem no Sangue, como todos nós aqui." - Lucas pediu - "Fique conosco, não recuse a nossa companhia.De verdade, você parece ser uma boa pessoa.Não sabemos de tudo, mas o que soubermos contaremos a você.Abrace a amizade que nós oferecemos.Fique, por favor."
"Obrigado..." - respondi, meio sem jeito. "Conhecer vocês foi a melhor coisa que me aconteceu, desde a minha morte. Podem contar comigo, ficarei com vocês e lhes direi tudo o que souber. De verdade."
-exceto o que é para ser mantido em segredo, pensei.
E fiquei com muito medo desse pensamento vil.