domingo, 3 de junho de 2007

04. Ratos e Boatos



Eram oito horas e dezessete minutos da noite, quando decidi ir ao Curitiba Strings. Acordei quando já haviam algumas estrelas no céu, e o sol se punha no horizonte. Quase não pude vê-las, pois uma camada grossa de nuvens escuras e poluição cobria o firmamento como uma cortina de fumaça.

O Astro-Rei agonizava nos limites do horizonte, e a noite se aproximava.Fechei a janela do meu minúsculo quarto. Não que o frio me afetasse, mas o calor era algo preferível. Talvez por enquanto.

Fazia algum tempo que havia perdido quase todo o meu contato com o mundo. Meu apartamento estava uma bagunça: filmes fotográficos, câmeras, aparelhos de iluminação e laptops estavam empilhados por tudo. O chão estava coberto por roupas sujas, latinhas de cerveja, caixas de pizza, garrafas de vinho-tinto e alguns preservativos.... sem uso.

Por esses dois meses, fui tomado de um medo absurdo de sair de casa. Meus clientes volta e meia ligavam, perguntando da minha disponibilidade durante o dia. Meus colegas e ex-namoradas me encontravam a noite, e diziam como eu estava diferente, e como haviam sentido minha falta. Me convidavam para baladas, bebedeiras, festas e restaurantes. Me convidavam para fumar narguilleh, para sentir o cheiro de um cafézinho quente, ou apreciar uma pizza. Ah, como eu amava pizzas! Mas o único cheiro, o único gosto que vinha em minha mente e inebriava meus sentidos era o do sangue deles.

Sou um predador, agora. Um bicho selvagem, sujeito a acessos de raiva e gula; capaz de coisas que mesmo um psicopata temeria. Um bicho com uma máscara de sutileza, discrição e segredos; mas tão cruel e inumano quanto aquela Corte de nobres decadentes e sem coração. Pelo menos, em potência...

Não, preciso me enclausurar. Preciso ficar trancado nesse mundo noturno para que eu não acabe com as pessoas que mais gosto e estimo. Preciso trancafiar tudo o que é humano em mim, e me lembrar do quão bom era ser tão vulnerável, quente e capaz de amar. Preciso guardar esses detalhes, como eu os guardava nas fotos.

Enfim, cheguei ao bar. A música estava agitada, e havia uma balada no local. Sentei-me no balcão. Cristiano sorriu ao me ver.

"O de sempre, caçulinha?"

Ri ao ouvir isso.

"Caçulinha?" - perguntei, pagando 50 reais pela bebida. Precisava aprender a caçar.

"É. Tá todo mundo comentando de você, cara. ´Jesuis' te ama. O Príncipe não poupa ninguém, e você saiu na moral! Olha, só por essa, a segunda é por conta da casa."

"Obrigado mesmo, Cristiano... mas, você pode me dizer mais sobre o Príncipe e a Corte dele?"

"Claro... cara, o Príncipe é um canalha. Mas não diga isso pra ele. Sério, meu. Ele pode parecer o cara mais equilibrado e justo do mundo... mas sério, ele é monstro. Ele é doido. E a Corte dele..."

Uma voz feminina surgiu do lado do balcão:

"... são um bando de bajuladores filhos da puta, não valem o que bebem. Cara, tenho nojo daquela ameixa-seca de cartola. Sério mesmo. Dá nojo. Dá Raiva!"

"Eu ainda não tive a honra de saber o nome da senhorita..." - olhei para a moça. Como era linda!Estava sentada ao meu lado, e eu nem a havia notado. Seus cabelos eram negros, curtos e bonitos; sua pele alva como a neve e seus olhos eram negros e vulneráveis, contrastando com sua postura anárquica e irrequieta. Não devia ter mais que uns 22 anos, e trajava um vestido negro.



"Meu nome não é importante. Então, você é novo por aqui, hein? E disse umas verdades pro Príncipe, certo? Caaaaaara, isso que é coragem. Você devia ser um Carthiano."

"Obrigado... mas o que é um Carthiano? Tem algo a ver com a Corte Invictus? Ou esse tal Clã Mekhet?"

Cristiano riu, e explicou:

"Não, cara. Clã é uma coisa, e 'Corte' é outra. Clã é tipo uma raça, digamos assim. Ninguém sabe de onde surgiram os bebedores de sangue, mas desde sempre existem cinco 'tipos' classificados.Você, assim como eu e os que nos criaram, é um Mekhet, uma 'espécie' de vampiros soturnos, discretos e espertos.A Katrina, a moça de boca suja aqui do lado, é uma Gangrel, um clã de gente selvagem, animalesca e boca-suja. O Xerife é do Clã Gangrel também."

"E esse Clã Ventrue, do Príncipe?"-perguntei. Katrina se exaltou:

"Fascistas. Bando de gente que gosta de mandar nos outros. Eles acham que podem controlar vampiros e humanos, secretamente. Eles são meio lunáticos, uma mistura daqueles coronéis de novelas de época com aquele personagem de desenho que quer dominar o mundo. São uma merda, isso sim. "

Cristiano fez uma careta.

"Obrigado pela aula, Kat.Além desses três, tem o Clã Nosferatu e o Clã Daeva. Os primeiros são vampiros estranhos, geralmente horripilantes ou assustadores, caso não sejam feios, o que é muito raro.Eles sabem de tudo, até mais do que nós. E os Daeva são..."

"Veadinho!" -exclamou Katrina de súbito para um garoto loiro, que estava dançando insinuantemente na pista, e distribuía sorrisos para todos.Distraía-se com a música.Era um garoto bonito, imaginei que poderia ser modelo fotográfico ou algo do gênero. Seus sorrisos faziam com que seus caninos pudessem ser vistos por entre os lasers e as luzes estroboscópicas. Ao ouvir Katrina, fez uma careta e veio em nossa direção.



"Estávamos falando de você!" - continuou Kat, conversando com o rapaz.Ela lhe roubou um beijo, numa atitude claramente "inversão de papéis". Eu sorri, meio sem jeito.

"Muito engraçadinha, você, Kat. Sou o Lucas.E o que diziam sobre a minha pessoa?" - perguntou o rapaz, olhando-me de relance rapidamente.Tive de repente uma sensação esquisita, que preferi ignorar, ao olhá-lo. Cristiano explicou:

"Estávamos falando com o Pietro, sobre os clãs. Ele é um 'recém-nascido'. Íamos apresentar os Daeva..."

"Ah sim, é o melhor clã de todos" -explicou Lucas- "é tão perfeito que toda essa gente nos inveja.Um clã de... "

Katrina mostrou a língua, e continuou a explicação:

"... michês, artistas, prostitutas e toda essa gente da zona. Eles são uns posers, bando de gente metida e desocupada que acha que pode posar e seduzir todo mundo"

"A segunda metade está certa, cara. Os Daeva são vampiros humanos, sedutores, hedonistas... e um pouco metidos mesmo, não é, Lucas?" - riu Cristiano.

"Imagine! Metido é um Ventrue.Eu não me acho metido, é que às vezes eu não enxergo as pessoas..."

"Enfim" - prossegui o barman - "cada clã tem suas fraquezas, poderes e reputação ."

"Cristiano... enquanto eu estava sendo levado pra mansão da Corte, eu consegui ver uma coisa...de longe... como se estivesse vendo com um binóculos. Esse é um dos 'poderes' que você diz? Ver as coisas de longe?"

"Sim. Mas não é só um poder de ultra-visão, são super-sentidos no geral. Nosso clã tem facilidade para aprender esse tipo de poder. Os anciões chamam esse poder de Auspícios, pelo que ouvi dizer . Mas há muitos outros. Já vi muitos Mekhets que conseguem desaparecer do nada ou correr numa velocidade absurda. Com um pouco de meditação, você consegue desenvolvê-los... ou torná-los mais fortes."

"Qual o poder dos Daeva?" - perguntei novamente.

"Eles conseguem seduzir as pessoas instantaneamente... ou quase isso, com a habilidade deles. Não importa o sexo, a pessoa se apaixona pelo vampiro e faz qualquer coisa que ele diga."

"Se chama Majestade" - acrescentou Lucas com um sorriso malicioso, jogando em si mesmo o conteúdo de uma taça de champanhe- "mas na maioria das vezes eu não preciso dela. Uso meu próprio charme pessoal."

"Que seja, veadinho. Então, Pietro, existe esse troço de poderes, sim.Mas você queria saber sobre a 'Corte', certo? Cris, explique pra ele" - pediu Kat.

"Além dos clãs, existem 'Assembléias', ou 'Instituições' da nossa espécie.É como uma sociedade, um clube onde você faz parte.A Corte Invictus é uma delas. E existe pelo mundo todo, mas é independente e auto-suficiente em cada cidade. Aqui em Curitiba, eles são os mais influentes. Como você viu, eles são uma corte de vampiros antiquíssimos, que lutam por poder e mais poder. Eles dizem que mandam na cidade. São antigos nobres, cavaleiros, advogados, empresários e governantes; que querem tomar bairros, empresas, dinheiro e tudo pra eles. Fique longe dessa gente, cara. Essa gente antiga é falsa, perigosa demais. "

"E esses Carthianos? Quem são?" - quis saber.

"A Opção Carthiana é um grupo de vampiros modernos, um bando de socialistas e anarquistas organizados que tentam mudar o governo, fazer com que as coisas aconteçam do jeito justo. Eles estão em guerra contra a Corte Invictus, e são a segunda assembléia mais poderosa aqui da cidade.São boa gente, mas às vezes são radicais demais ou são completamente fora da realidade.A Kat aqui é Carthiana."

"E você, Cristiano?"

"Eu sou um Desalinhado, como o meu bar. Desalinhados são aqueles que preferem ficar fora das assembléias, tipo, em cima do muro. O Curitiba Strings é um lugar neutro, todos podem vir aqui. Mas se der briga, as pessoas são julgadas conforme as leis da Corte... e da assembléia do sujeito, se for o caso.Mas esse tipo de coisa é rara. Todo mundo reconhece que precisa de um ponto de encontro neutro."

Lucas falou:

"Além desses, existem outras 'Assembléias', mas são estranhas demais, minha gente. Eu não sei muito sobre elas, mas... bem, já ouviu falar sobre a Lança Santa?Uma religião esquisita,um bando de fanáticos, e apoiam a Corte. Coisa medonha.Tenho uma amiga que é do Círculo da Anciã. Outra coisa estranha, um bando de ocultistas, bruxos. Você é corajoso, Pietro. Anda sozinho por aí, com a cidade em guerra, desafia o Príncipe e ainda sai sem problema... "

"Fica com a gente" - pediu Kat. "é muito perigoso esse jogo dos antigos.Sair por aí sozinho é perigoso."

"É, Pietro. Você é jovem no Sangue, como todos nós aqui." - Lucas pediu - "Fique conosco, não recuse a nossa companhia.De verdade, você parece ser uma boa pessoa.Não sabemos de tudo, mas o que soubermos contaremos a você.Abrace a amizade que nós oferecemos.Fique, por favor."

"Obrigado..." - respondi, meio sem jeito. "Conhecer vocês foi a melhor coisa que me aconteceu, desde a minha morte. Podem contar comigo, ficarei com vocês e lhes direi tudo o que souber. De verdade."

-exceto o que é para ser mantido em segredo, pensei.

E fiquei com muito medo desse pensamento vil.












sexta-feira, 1 de junho de 2007

03. O Tribunal dos Condenados



"A Mansão Falkenberg está longe?" - perguntou o homem moreno ao loiro de cabelos bagunçados, no banco da frente. Olhei pela janela. Estava no banco de trás, amarrado, e dos meu lados estavam dois homens que pareciam ser humanos... mas farejei algo estranho nos dois. Olhei pela janela. Estávamos passando por um bairro de classe média alta, o Água Verde. Enfim, pegamos uma restrita sequência de alamedas e ruelas arborizadas, e chegamos até o que parecia ser um grande casarão em estilo barroco. Fiquei o tempo todo em silêncio, anotando mentalmente cada detalhe.Toda a construção era cercada por um grande jardim, que era circundado por altos cedros ; e servindo como proteção ainda haviam grandes grades eletrificadas. Arbustos bem-podados e dois longos roseirais demonstravam a grande extensão do local.

Paramos o carro. O algoz do rapaz loiro deu-me um chute nas costas apenas para ter certeza de que eu não reagiria. Quis matá-lo, mas estava todo amarrado.

"Vá para o inferno" - vociferei. "Não tenham dúvidas que eu daria cabo de vocês se eu não estivesse amarrado. Covardes filhos da puta!"

"Poupe suas palavras para o tribunal, fugitivo. " - respondeu o loiro, rindo da minha ousadia desmedida. Os mortos riem, afinal.

Eles me levaram até o casarão. Olhei ao redor. Todas as janelas da mansão estavam cobertas por grossas cortinas de algum material que parecia veludo vermelho-escuro, mas era possível notar uma luminosidade lá de dentro. Olhei para a porta. Era uma porta dupla, feita de uma madeira escura que parecia ser muito resistente, com alguns detalhes em vidro colorido. Do lado, haviam dois homens parecidos com os que me guiavam, guardando o local. Haviam carros estacionados perto da mansão. Todos eles caríssimos, a maioria de modelo europeu.

Olhei para cima. Todas as janelas estavam cobertas......todas......menos uma. Era no terceiro andar, então por mais que eu tentasse não conseguia ver seu interior. Mas queria muito..... queria saber....olhei fixamente para o ponto, então algo estranho ocorreu. Como se por um mágico zoom fotográfico, consegui ver um homem próximo à janela. Estava amordaçado e amarrado no que parecia ser uma estátua de pedra sólida. O rapaz me observava, em desespero, com os olhos arregalados. Um condenado! E sua condenação seria morrer pela luz do sol, quando a manhã tocasse o firmamento.




E eu estava fadado a ter o mesmo fim! Tentei me desvencilhar da corda, mas estava amarrado de maneira tão inexorável que o máximo que consegui foi cair no chão e me debater como uma minhoca louca, e apanhei novamente por isso. Estava com muito ódio! Queria meter um soco na cara daqueles homens.

Enfim, fui levado ao interior da Mansão Falkenberg. Um enorme salão com duas escadas de madeira e uma estrutura que parecia um mezanino no alto. O local todo era decorado por carpês vermelhos, tapetes de fabricação renascentista e enormes brasões pintados com esmero em escudos de metal, além de muitas obras de arte raras. Algumas delas demonstravam vampiros, mas eram poucas. Em todas elas, poses de glória. De conquista.

Por todo o local haviam vampiros vestidos do jeito mais anacrônico possível: ternos renascentistas, sobretudos medievais, vestidos com o corte quadrado, trajes rendados, camisas vitorianas , broches de jóias e tudo quanto fosse possível. Alguns eram mais modernos, mas igualmente formais e reservados. Estavam todos reunidos em mesinhas, poltronas e divãs por todo o salão, bebendo despreocupadamente em cálices de cristal, ouro ou prata o precioso sangue humano.Alguns conversavam, ou sussuravam entre si coisas em português,francês, italiano, alemão, espanhol ou grego. Podia jurar que ouvi alguém falar em latim. Eu estava sedento. Olhavam-me com desdém. Alguns poucos pareciam preocupados, ou ansiosos. Algumas vampiras ou vampiros olhavam-me de maneira insinuante. Uma melodia estava sendo tocada num piano, em algum outro cômodo. Então, uma figura de cartola surgiu no mezanino. Segurava um cetro, ou bengala, com a cabeça de um chacal. Imaginei que fosse de prata. Todos se calaram, e se ajoelharam em ar de reverência.




Não fiz o mesmo. Levei um safanão do homem loiro.Ele se pronunciou à figura de cartola e a todos:

"Vossa Alteza, o Príncipe Ferdinando Dalgaard, do Clã Ventrue , da Corte Invictus ;declarou expressamente que qualquer progênie criada sem a sua autorização, dentro de seu domínio, DEVE ser trazida sob seu julgamento e eliminada sem demora. "

O Príncipe fez um sutil gesto de concordância, com a cabeça. Juliano continuou seu discurso.

"Logo, eu, Juliano Dalcorso, do Clã Gangrel, Xerife da cidade e Membro da Corte Invictus; trago este membro não-reconhecido do Clã Mekhet ao seu julgamento e mercê."

"Clã Mekhet -" - repeti em sussurro, anotando isso mentalmente.

Ferdinando olhou para mim, fixamente. Algo como uma sensação de frio extremo tomou conta do meu corpo. Não notei direito o seu rosto, porque tive medo de usar o " poder da ultra-visão" que descobrira que possuía quando da visão do homem condenado.Ele falou:

"Que tem a dizer sobre isso, forasteiro?"

"Isso é um absurdo! Não pedi para me tornarem nisto. Minha criadora me abandonou, e agora sou condenado a um destino pior do que a morte! "

O Príncipe exibiu seus caninos num sorriso sádico, impiedoso.

"E quem foi o responsável por criar esta criança da noite?"

Juliano respondeu:

"Amanda Trulleski, meu senhor. Ela não tinha autorização para estar na cidade. Recebemos uma carta da Corte Invictus de Paris e ela figura como uma anarquista procurada da Opção Carthiana. Ela está sob Caçada de Sangue, e além disso o senhor mesmo declarou que por esse mês seria proibida a criação de novos Membros em Curitiba; logo..."

"Logo, eu vou ser condenado por um ato que nem mesmo eu cometi! " vociferei, com raiva. "Que tipo de justiça é essa, meu caro lorde? Onde os filhos pagam pelo crime dos pais! "

A assembléia emudeceu-se, e mesmo o Príncipe pareceu refletir sobre a situação.Continuei meu apelo:

"Se esta é a justiça de vocês, ela está ultrapassada e morta, como todos neste salão. Acaso não estudaram os códigos, as leis e as jurisprudências atuais? As leis de vocês são ridículas, e se eu for julgado aqui, então a minha morte será a única coisa digna neste local. Vocês são fósseis, é isso que são! "

Um vampiro de aspecto religioso, vestido com algo que lembrava uma túnica medieval, gritou, indignado:

"Blasfêmias, blasfêmias contra vossa Alteza e a Corte! Morte a este insolente!"

"Ohhhh!" - suspiraram os presentes.

Respondi, protestando:

"Não , não estou, de forma alguma, blasfemando contra esta instituição ou contra o meu caro lorde. O que eu solicito, apenas, é um julgamento digno. Preciso de alguém que advogue por mim!"

Ferdinando parecia mais fascinado com esse discurso do que constrangido ou desafiado.Refletiu por minutos, e então um vampiro de aspecto vitoriano sussurrou algo em seu ouvido, por mais alguns minutos. Os presentes sussurravam coisas inaudíveis, como se por telepatia, e eu as ouvia todas.Enfim, se pronunciou:

"Minha criança. Você será poupado da morte final se jurar lealdade a Mim e ao Meu Domínio. Enquanto estiver dentro dele, estará seguro e ninguém lhe causará mal sem um julgamento justo dentro desta Casa. Poderá caminhar livre sob a Urbe, se não violar nossas leis de algum modo, e se me reconhecer como seu senhor e suserano"

Pensei por alguns momentos, e então, me ajoelhei, com ar de reverência. O Príncipe respondeu:

"Então, concedo-lhe a liberdade e o livre trânsito pela Urbe. Podes ir agora."

Juliano olhou para mim com ar de desprezo, mas afinal saí da Mansão Falkenberg.

Peguei um taxi e fui correndo ao meu apartamento. Liberdade.


Ah, Deus estava comigo!

Escapei de um destino mais terrível que a morte.

O mesmo não posso dizer daquele condenado. Pobre-diabo.

A única coisa que salvou minha vida foi a minha própria retórica, e talvez o conselho certo de alguém que tem planos para mim.

Eu me pergunto, que planos seriam esses? Tenho medo de saber. Mas quero.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

02. As Leis da Noite




Como eu disse ontem, faz dois meses que eu me tornei um Vampiro. Desde então, não tenho conseguido me adaptar direito a essa nova condição.... estou com medo.

Continuo trabalhando como um fotógrafo normal, mas mudei meu turno para a noite.O síndico do meu pequeno apartamento no centro anda desconfiando dessas minhas idas e vindas noturnas ao estúdio, e não sem razão. Minha pele está pálida demais, e quando tomo um banho a água do chuveiro me aquece, mas passa por mim como se eu fosse feito do mais duro mármore.

E esta sede, esta maldita Sede....

Sinto vontade de beber sangue.

Eu caminho pela praça Osório, próximo a onde moro, e o aroma do sangue das pessoas é como o perfume mais doce do mundo.É como se você vagasse por dias em um deserto sem qualquer vestígio de água e de repente, você visse pessoas carregando o néctar mais delicioso e gelado do mundo. Ou, usando uma metáfora melhor, como se você estivesse perdido em um domingo a noite numa cidade gelada, onde tudo estivesse fechado, e finalmente encontrasse um lugar 24 horas que servisse um cafézinho quente.

Mas não tenho coragem de tirar sangue das pessoas... é demais para mim. Meu refrigerador está lotado de carne sangrenta de animais, que eu compro em açougues. Mas aquele sangue é insosso, é como se alguém bebesse uma vodka sem álcool, ou um suco sem açúcar. No entanto, é a única coisa que pode me nutrir, por hora - eu tive o desprazer de vomitar todo o tipo de comida normal que provei, desde aquela noite.

Além disso, há algo estranho em mim... algo como uma besta, uma fera, um instinto predatório. Estou com medo. É como se uma sensação de perigo iminente tomasse conta do seu corpo, como se uma overdose de adrenalina se espalhasse por todas as veias, por todo o sangue. E eu as vejo, de relance. Pessoas como eu, escondidas entra a multidão, fingindo ser como ela. Pálidos, seus olhos brilham em diferentes cores no breu noturno: branco, roxo, lilás, vermelho, dourado, prateado, furta-cor, anil.

Parece que apenas eu consigo vê-los, e essa Mácula Predatória se faz presente toda vez que os vejo. Um instinto de rivalidade, de territorialidade. Eles, no entanto, parecem me ignorar. Desaparecem entre a multidão tão logo eu os vejo.Está frio, e eu consigo senti-lo sob a minha pele. Mas só isso. Ele não me afeta mais.

Criei um pouco de coragem. Voltei ao Curitiba Strings , talvez consiga driblar esse medo de minha "nova espécie".Desta vez, o local estava menos movimentado.Aquele tenebroso instinto tomou conta de mim. Outros Vampiros. E haviam humanos, também. Aquele era um bar de vampiros! Sentei-me no balcão. Os presentes fitavam-me maliciosamente. Conversei com o barman, um jovem de cabelos lisos.

"Aí, o que vai querer?"

"O de sempre" - respondi, em tom de seriedade.O jovem sorriu. Tinha cabelos brancos, e uma tatuagem nos braços.

"O de sempre, é? Hahahaha. Ok, a melhor safra para o novato" - ele serviu-me um líquido quente e rubro, que buscou de uma pequena sala atrás do balcão. "Você está de passagem pela cidade? Nunca o vi por aqui, cara."
Tentei manter a compostura.

"Estou à procura de minha criadora, Amanda...Trulleski... ela desapareceu. Sabe onde posso encontrá-la?"

"Perdeu o bonde, amigo. Essa Amanda não tinha permissão para estar na cidade."

"Como assim, permissão? Quem manda por aqui?" - O jovem riu ao ouvir isso.

"Aqui mando eu, Cristiano, o proprietário desse bar; mas se você está falando da cidade, oficialmente... ela é governada pelo Príncipe .Se ele não sabe que você foi criado, eu não queria estar no seu lugar..."

"Um Príncipe? Tipo, um governante?"

"Sim. Ele manda ,por assim dizer, nos vampiros de Curitiba. Toda a cidade pertence a ele...bem, quase toda. Sua senhora não lhe ensinou nada, não é? Você deve estar ferrado."

"Então me ajude, por favor" -supliquei - "Me diga o que preciso saber"

"Primeiro, você deve se apresentar ao Príncipe. Deve encontrá-lo, e jurar lealdade a ele. No seu caso, é melhor você fazer isso rápido, ou então alguém vai te fritar, cara. Depois que se apresentar, você poderá ficar mais tranquilo.Volte aqui e eu contarei o que você precisa saber" - fiz um movimento afirmativo, concordando.

"E onde posso encontrar esse príncipe?"

"Ele pode ser encontrado no...." -de repente, dois homens adentraram violentamente no bar. Ambos estavam vestidos com ternos e gravatas, portando celulares de última geração.Havia um loiro,alto, de barba mal feita e cabelo despenteado; e outro mais baixo, moreno, de compleição mais fraca.O loiro fez um sinal com a cabeça para o seu auxiliar em minha direção, e disse: "É ele o fugitivo, pegue-o".

Investi meu punho contra o rosto do homem, que era mais baixo que eu, mas de nada adiantou. Este era incrivelmente mais forte, e aplicou-me um soco em minha barriga. Me faltou ar. Cristiano gritou:

"Juliano, ele é inocente!"

O loiro respondeu, rugindo: "Cale a boca, seu anarquista nojento. Estou sob ordens do Príncipe."

Um tapa forte em minha nuca. Um Audi negro. Luzes da Cidade. São as últimas coisas que me lembro. Seja para onde eu esteja sendo levado, que Deus esteja comigo. Se ainda estiver.











quarta-feira, 30 de maio de 2007

01. Sangue e Borboletas : O Prenúncio de minha Morte.

Era uma noite fria de março, lembro-me muito bem. Ela deixou-me uma mensagem no celular.
Há dois meses atrás, fui contratado por uma bela mulher que apresentou-se sob o nome Amanda Trulleski. Nosso encontro se deu em um elegante, porém misterioso bar, o Curitiba Strings. Tratava-se de um lugar afastado da cidade, em algum beco escuro próximo ao Largo da Ordem, um bairro histórico e distinto de Curitiba. Era um lugar pequeno, e imaginei que não coubessem mais do que 300 pessoas ali. Foi razoavelmente difícil encontrá-lo, mas enfim o esforço valeu a pena.

Tratava-se de um elegante barzinho alternativo, algo mais para um pub londrino do que para um "lounge/bar" como o local se denominava. O balcão era rústico, feito de algum tipo de mármore negro. O chão era composto por pastilhas da mesma cor, e as paredes eram brancas. As banquetas eram de um vermelho fosforecente, e as mesinhas eram como as dos cafés europeus, pequenas, redondas e feitas de um mosaico de pastilhas. Duas coisas me chamaram a atenção no lugar: os clientes e a decoração. Esses vestiam-se elegantemente, como se estivessem em um evento da alta sociedade, e bebiam alegremente um drink rubro em taças do cristal mais fino enquanto conversavam. Imaginei que fosse vinho, ou bloodymary. A decoração era por demais macabra: nas paredes do bar, haviam grandes painéis em sépia apresentando cenas surreais: um violinista com a metade inferior do corpo decepada, exceto a vértebra, tocando violino como se estivesse vivo e concentrado em sua melodia; no outro, um jardim botânico permeado por um roseiral morto e espinhento, onde apenas suas rosas floresciam rubras; e no último, uma bela mulher de aspecto aristocrático e triste em frente a um espelho no qual sua imagem não aparecia, apenas suas roupas.Na hora, imaginei se o artista não fosse demasiadamente vanguardista ou sádico, ou coisa pior... enfim, o local todo era um jogo de vermelho, branco, preto e marrom.

Enfim, encontrei Amanda. Uma belíssima mulher de olhos e cabelos negros, em contraste com sua pele perfeitamente pálida e angelical, que parecia brilhar com o vestido azul-marinho que trajava.

Ela revelou-se como a filha de um renomado biólogo, e seguiria os passos de seu pai. Aventurou-se com ele na infância por diversos países, em busca de espécies raras de borboletas.Amanda queria que eu criasse um álbum fotográfico para registrar a coleção que havia herdado de seu pai.

No entanto, não havia um tom saudosista ou emotivo em suas palavras... havia algo de malicioso, cruel em suas feições.
Ela exibia um sorriso sutil... predatório.Não tive como reagir. Em metade de um instante, ela estava com seus belos lábios em meu pescoço... mas não era como um beijo, era uma tentação proibida, profana.Fiquei em êxtase. Depois, uma sede esmagadora tomou conta de mim. Uma sede...de sangue!

Não resisti ao ocorrido. Logo depois,desmaiei. Mas não foi um sonho. Sei disso. Acordei na cama do meu pequeno apartamento, no pôr-do-sol do dia seguinte.

Amanda, ou qualquer que seja o nome da minha amante, me abandonou. Não sei o paradeiro dela, nem porque me tornou nisto.

Meu corpo está preservado para sempre, e vivo como um fotógrafo de 26 anos viveria... com algumas exceções. Meu corpo e minha alma estão marmorizados, estagnados, como uma borboleta conservada no vidro.

E, tais como as borboletas das selvas inexploradas, agora uma enorme cidade infestada de seres noturnos espera para ser revelada por meus olhos e minhas lentes...